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Presidente do Conselho Constitucional discursa na Cimeira J20/G20

Setembro 5, 2025

A Presidente do Conselho Constitucional, Lúcia da Luz Ribeiro, discursou esta quinta-feira, em Joanesburgo, África do Sul, na Cimeira J20 – Fórum dos Presidentes dos Tribunais Constitucionais e Tribunais Supremos dos Países do G-20.

Moçambique, representado pelo Conselho Constitucional, participa neste fórum, subordinado ao tema “Justiça em Tempos de Mudança: Independência, Inovação e Cooperação”, a convite do Tribunal Constitucional da África do Sul.

A intervenção da Presidente do Conselho Constitucional esteve inserida no painel que se debruçou sobre “Mudanças Climáticas – Justiça Através da Colaboração Judicial”.   

A Cimeira J20 tem o seu término previsto para hoje e participam nela, para além dos Presidentes dos Tribunais Constitucionais e Tribunais Supremos dos Países do G20, representantes de outros tribunais constitucionais e organizações não governamentais a título de convidados.

Eis na íntegra a intervenção da Presidente do Conselho Constitucional, Lúcia da Luz Ribeiro:

TEMA DE INTERVENÇÃO: O Papel do Sistema de Justiça na Salvaguarda da Justiça Climática: Um Foco em Moçambique

Sumário Executivo

Esta comunicação explora o papel do sistema de justiça na salvaguarda da justiça climática, com ênfase particular para Moçambique – país contribuinte mínimo para as emissões de gases de efeito estufa.

As mudanças climáticas representam uma ameaça significativa à estabilidade e ao desenvolvimento global, havendo nações vulneráveis como Moçambique que sofrem os efeitos adversos destas, com consequências gravosas e diversos aspectos humanitários. O sistema de justiça é essencial para a implementação efectiva de compromissos climáticos, resolução de disputas e garantia de que as vozes de todos os membros da sociedade sejam ouvidas nas negociações climáticas.

A educação e a consciencialização pública são elementos fundamentais para a construção de um círculo mais amplo de cidadãos informados sobre as mudanças climáticas. E a Constituição da República reconhece o direito a um ambiente equilibrado.

Tendo em conta o papel dos tribunais na sociedade, qual deverá ser o seu papel no âmbito da mitigação das mudanças climáticas? A nossa abordagem estruturar-se-á em: 1 – Quadro legal; 2 – Como Moçambique lida com as questões ambientais?; 3 – Protecção dos grupos vulneráveis; 4 – O papel do sistema de justiça na justiça climática.

  1. Quadro legal

A primeira Constituição da República de 1975 não fazia qualquer alusão directa ao ambiente. Já a Constituição da República de 1990, a segunda, contemplava normas relativas ao ambiente, concretamente nos seus artigos 72 e 37, que definiam respectivamente o direito fundamental do cidadão moçambicano de viver num ambiente equilibrado e a responsabilidade do Estado de garantir o equilíbrio ecológico e preservação do ambiente[1].

A Constituição de Moçambique de 2004, a actual, fortalece o compromisso nacional com a justiça climática através do Artigo 90, n.º 1, sob a epígrafe “Direito ao ambiente”, ao estabelecer que “Todo o cidadão tem o direito de viver num ambiente equilibrado e o dever de o defender”.

Esta disposição significa que todo o cidadão tem direito fundamental a um meio ambiente que seja livre de poluição, com condições salubres e, ao mesmo tempo, a responsabilidade de activamente proteger e preservar esse ambiente para as gerações futuras. Isso implica que o direito e o dever estão interligados e que a preservação ambiental é uma obrigação tanto do Estado quanto de todos os indivíduos, não apenas de governos ou de quem causa a poluição. Por isso, a educação e a consciencialização pública são elementos fundamentais para a construção de um círculo mais amplo de cidadãos informados sobre o ambiente e sobre as mudanças climáticas.

“E importante referir que o Estado é responsável[2] por promover iniciativas para garantir o equilíbrio ecológico, a conservação e a preservação do ambiente, visando a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos, bem como o desenvolvimento sustentável. O Estado deve adoptar políticas visando: a) prevenir e controlar a poluição e a erosão; b) integrar os objectivos ambientais nas políticas sectoriais ; c) promover a integração dos valores do ambiente nas políticas e programas educacionais; d) garantir o aproveitamento racional dos recursos naturais, com salvaguarda da sua capacidade de renovação, da estabilidade ecológica e dos direitos das gerações vindouras; e) promover o ordenamento do território, com vista a uma correcta localização das actividades e a um desenvolvimento socioeconómico equilibrado.

A incorporação deste direito constitucional na governação climática confere aos cidadãos um quadro legal para a implementação da justiça climática e a possibilidade de responsabilização dos agentes incumpridores dos compromissos climáticos.

O Estado, como garante do Direito ao Ambiente e, por conseguinte, da qualidade de vida do cidadão, deve assegurar que as políticas e o quadro legal sejam governados por vários instrumentos estratégicos que permitam prevenir e controlar todos os factores que possam comprometer este direito.

Para além dos instrumentos internacionais ratificados,[3] podemos apontar:  

  1. Lei do Ambiente (Lei n.º 20/1997)

Esta lei estabelece um quadro abrangente para a protecção ambiental, garantindo que considerações climáticas sejam integradas nas políticas nacionais. Como se pode depreender pelo tempo de sua vigência, a mesma está já um pouco desajustada dos desafios actuais e dos compromissos ambientais de hoje, aliado à questão das mudanças climáticas, que hoje são maiores do que há 20 anos, altura em que a lei foi aprovada.

  • Estratégia Nacional de Adaptação e Mitigação de Mudanças Climáticas (2013)

Esta estratégia delineia acções para melhorar a resiliência e promover a mitigação, reflectindo o foco da Convenção sobre as Mudanças Climáticas (UNFCCC) na adaptação e no desenvolvimento sustentável.

  • Iniciativas de Infra-estrutura Resiliente ao Clima (2022)

Escolas Resilientes ao Clima: política que visa aumentar a resiliência nos serviços essenciais, demonstrando o compromisso de Moçambique com a adaptação climática

2. Como Moçambique tem lidado com as questões ambientais?

As mudanças climáticas são tratadas de duas maneiras principais, nomeadamente, através da sua mitigação ou tratamento das causas e o seu controlo, por um lado, e a adaptação, que é tratar das consequências, por outro. A combinação dos dois produz um efeito amortecedor que é tecnicamente designado por resiliência climática.

Na mitigação, as acções principais são a redução das emissões de gases de efeito estufa (aqueles que contribuem para o aumento do aquecimento global) e, no caso de Moçambique, o maior centro de emissões até ao momento são as florestas, por conta do desmatamento e degradação causados pelo homem.

A nova Lei de Florestas, aprovada em 2023 (Lei 17/2023 de 29 de Dezembro), promove a conservação e uso sustentável das florestas como recurso económico e ambiental. E é implacável relativamente às infracções. Os tribunais administrativos têm, também, um campo de actuação no que concerne à observação da legalidade na implementação dessas medidas e, se necessário, aconselha a sua melhoria.

A mitigação também se aplica aos sectores da indústria, energia e transportes, onde o uso de tecnologias de baixa emissão é o recomendável.

Na adaptação, o país é chamado a fazer o seu melhor, pois, embora não seja contribuinte na emissão de gases de efeito estufa, é um dos mais afectados pelas mudanças climáticas, dada a sua localização geográfica, devendo, para se defender, optar por um mecanismo de adaptação bastante robusto. Porém, a adaptação exige recursos para o efeito e um quadro regulatório bastante específico, o que ainda não existe.

Embora o país ainda não tenha uma regulamentação específica sobre essas matérias, os tribunais podem, ao abrigo do direito do ambiente, implementar medidas interventivas, de modo a garantir que o Estado assegure a observação do princípio de poluidor pagador e, com isso, contribuir para a redução de emissões a longo prazo no país.

3.  Protecção de Grupos Vulneráveis

O sistema de justiça desempenha um papel crucial na protecção dos direitos das populações vulneráveis, assegurando que as suas necessidades sejam consideradas nas políticas e acções climáticas. Este aspecto é particularmente relevante para Moçambique, onde as comunidades são assoladas por eventos climáticos extremos, como ciclones, cheias, inundações e secas.

É preocupante, em muitas regiões do mundo e Moçambique não é excepção, o esgotamento dos recursos naturais, a desertificação, a degradação de solos, a escassez de água, a perda da biodiversidade, a subida do nível das águas do mar, a acidificação dos oceanos e outros efeitos que estão a afectar gravemente as zonas costeiras, como é o caso da cidade da Beira (o ciclone Idai provocou centenas de mortes e devastação inimaginável de infra-estruturas), para além das tempestades tropicais, cheias[4]e demais consequências.

É reconhecido que os impactos ambientais são bastante mais notórios nos países em desenvolvimento e, sobretudo, nas populações mais pobres e mais dependentes do sector primário, como agricultura, pastorícia, pesca e actividades florestais.

Dentro dos mais pobres, é ainda de salientar que as mulheres e as crianças são as mais vulneráveis. São elas, nas zonas rurais e não só, as principais responsáveis pela maior parte do trabalho agrícola, pela recolha de água e do combustível lenhoso para a sobrevivência diária ou segurança alimentar das suas famílias. Convém fazer notar que, no âmbito da consulta comunitária, é obrigatório que no processo seja considerada a participação das comunidades locais, mulheres, jovens e grupos vulneráveis.

Quando as injustiças ambientais e os riscos climáticos se cruzam, a resiliência é profundamente enfraquecida. Os impactos das mudanças climáticas acima enunciados amplificam os desafios sociais e económicos já existentes. As comunidades altamente afectadas pela degradação ambiental também tendem a enfrentar outros problemas sociais, tais como altas taxas de pobreza, problemas de saúde, desalojamentos e migrações em massa.

  • Papel do Sistema de Justiça na Justiça Climática 

A UNFCCC – Convenção sobre as Mudanças Climáticas estabelece um quadro legal vinculativo que exige que as partes tomem medidas contra as mudanças climáticas. Este quadro é fundamentado, entre outros, no princípio de responsabilidades comuns, mas diferenciadas, garantindo que as nações desenvolvidas apoiem os países em desenvolvimento na abordagem dos desafios climáticos. A educação e a consciencialização pública são elementos fundamentais para a construção de um círculo mais amplo de cidadãos informados relativamente à Convenção sobre as Mudanças Climáticas (UNFCCC).

Neste contexto, surge um movimento crescente no campo jurídico, conhecido como “justiça climática”, que visa garantir que a justiça social e a protecção ambiental sejam levadas em consideração no enfrentamento das mudanças climáticas.

A justiça climática, como conceito, envolve a responsabilização das partes que contribuem para a deterioração do meio ambiente, incluindo governos e empresas, além de buscar a reparação de danos causados e mitigação dos impactos ambientais. Diante das mudanças climáticas, o poder judiciário tem sido chamado a reinventar-se e a actuar de maneira proactiva na protecção do meio ambiente e das comunidades vulneráveis, contribuindo com as suas decisões para uma resposta mais eficaz às demandas ambientais.

Considerando o papel educacional constitucionalmente consagrado aos tribunais, concretamente no artigo 212, o sistema de justiça deve promover a mudança comportamental dos cidadãos, através da divulgação do direito e da consciencialização da sociedade sobre a importância do cumprimento da lei, promovendo o respeito pela justiça, o funcionamento adequado do sistema judicial e a cultura da legalidade. Os tribunais, ao aplicarem a lei, servem como modelos de conduta e incentivam a prática de actos conformes com a ordem jurídica, de modo a serem agentes activos na construção da resiliência climática, contribuindo para a fortificação das instituições, combate à corrupção e responsabilização dos infractores, visto que as mudanças climáticas são causadas pelo homem. 

Para que a justiça climática seja efectiva, é necessário que o pessoal do sector da justiça não apenas reconheça a urgência da crise ambiental, mas também possua conhecimento necessário para lidar com litígios complexos que envolvam múltiplos agentes e contextos multidisciplinares. Por isso, afigura-se importante a formação em redução do risco de desastres, para um futuro sustentável e resiliente; fiscalização do ordenamento territorial: trabalho de campo nos locais onde ocorre a destruição dos ecossistemas marinhos – habitats naturais sob influência das marés; embargo de obras ilegais, bem como acções de responsabilidade administrativa e criminal dos infractores.

Os cursos de capacitação têm sido conjuntos, envolvendo vários sectores, tais como tribunais, Ministério Público, Administração Nacional de Áreas de Conservação, Serviço Nacional de Investigação Criminal (sabemos quão importante são as áreas de conservação, especialmente as florestais, que actuam como reservatório de carbono, ajudando a mitigar as mudanças climáticas e a estabilizar o clima), como formação em Maneio Florestal Sustentável, preparando todos os envolvidos para a interpretação de conceitos e aspectos técnicos do manejo florestal, aplicando-os nos autos (processos-crime) relacionados com as infracções e crimes. A Procuradoria-Geral da República (PGR), defensora da legalidade e do interesse público, assume o seu vital papel na defesa dos interesses ambientais, concretamente o exercício da acção penal, assegurando a aplicação das respectivas sanções.

A actuação dos tribunais na interpretação e aplicação das leis ambientais é crucial para a efectividade das políticas de mitigação, devendo usar a sua acção como meio de pressão aos governos, empresas e demais pessoas colectivas, de modo a a adoptarem políticas mais sustentáveis, com vista à redução das emissões de gases de efeito estufa. Além disso, os litígios climáticos podem servir como meio para a consciencialização pública sobre a urgência das questões climáticas e o impacto das acções humanas no meio ambiente, permitindo que cidadãos e organizações não governamentais participem activamente do processo de busca por soluções justas e eficazes.

Como exemplo da intervenção do poder judicial, podemos apontar o caso dos graves danos ao ambiente e à saúde da população causados por uma empresa mineradora na província de Tete.  A mineradora foi intimada a abster-se de poluir, entretanto, recorreu da decisão e não está a cumprir com o decidido pelo tribunal de 1.ª instância. Aguarda-se a decisão do recurso. Já passa um tempo significativo sem resposta e os danos ao ambiente continuam, daí que a eficácia das normas ambientais depende da capacidade dos sistemas judiciais em garantir a sua implementação, assim como em julgar com celeridade as demandas relacionadas à protecção ambiental e aos danos provocados pelas mudanças, o que contribuirá para a consolidação do quadro legal, adaptando e tornando o país mais resiliente às mudanças climáticas.

Outro exemplo de sucesso da intervenção do sector da justiça, concretamente do Ministério Público, foi o trabalho de campo de visita às concessões florestais, com foco na observação das boas práticas de exploração e transporte de madeira, o que resultou:a) na denominada “Operação Tronco”, liderada pelo Ministério da Terra, Ambiente e Desenvolvimento Rural (MITADER), em coordenação com a Procuradoria-Geral da República, com vista ao aperfeiçoamento da fiscalização florestal e reposição da legalidade no sector; b) no incremento da fiscalização aos operadores florestais e apreensão de elevados volumes de madeira ilegalmente contentorizada e despachada, p. ex., no Porto de Pemba.

No que concerne a acções relativas à poluição dos solos, água e emissão de ruídos e vibrações, salientamos que, embora as questões climáticas sejam frequentemente abordadas no âmbito do direito internacional e das políticas públicas, a actuação dos tribunais tem-se tornado cada vez mais crucial. Lembrar que a recente Jurisprudência do Tribunal Internacional da Justiçasobre casos relacionados com o clima ressalta as obrigações legais dos Estados em proteger as populações vulneráveis dos danos climáticos, daí que os Estados têm a responsabilidade legal de mitigar os impactos das mudanças climáticas, alinhando-se à ênfase da UNFCCC nas obrigações estatais.

Considerações finais

Podemos, como considerações finais, enfatizar que de factoo sistema de justiça é fundamental para a salvaguarda da justiça climática, à luz da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (UNFCCC)[5], particularmente para nações vulneráveis como Moçambique.

Ao reforçar os quadros legais, asseverar a responsabilidade e promover a participação pública, incluindo o direito constitucional a um ambiente equilibrado, o sistema de justiça serve de garante da eficácia da governação climática.

A construção da resiliência climática incumbe a todos, sem excepção. O sistema de justiça exerce papel fundamental na salvaguarda do Estado de Direito Ambiental e na eficácia da Justiça Climática, ao mesmo tempo que promove a mudança comportamental de todos os cidadãos face aos desafios impostos pelas mudanças climáticas.


[1] Artigo 72 da CRM: “Todo o cidadão tem o direito de viver num meio ambiente equilibrado e o dever de o defender”

[2] Artigo 117 (Ambiente e qualidade de vida)

[3] O Acordo de Paris sobre as mudanças climáticas; a adesão de Moçambique ao Protocolo de Kyoto; e a emenda de Kigali relativa ao Protocolo de Montreal sobre substâncias químicas, devido ao alto potencial de aquecimento global, causador das mudanças climáticas.

Moçambique aprovou, também, a Estratégia Nacional de Transição Energética (ENTE), que vai permitir a aplicação dos recursos de forma sustentável na prevenção e combate aos efeitos das mudanças climáticas.

[4] Quanto à gestão do risco de desastres e da iniciativa de aviso prévio para todos, Moçambique em 2022,  aprovou o regulamento de operacionalização da plataforma integrada de disseminação e comunicação de informação de aviso prévio de cheias e ciclones.

[5] Convenção-Quadro para as Mudanças Climáticas. Sigla em inglês.

Last modified: Setembro 5, 2025

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